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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Sua Santidade, o Patriarca Kirill, Concede Entrevista à Revista Forbes (França).


Em 26 de outubro de 2021, Sua Santidade, o Patriarca de Moscou e Toda a Rússia, Kirill, concedeu entrevista à Forbes França.

A Revista inquire Sua Santidade, o Patriarca Kirill, sobre as crises da sociedade atual e a atuação da Igreja.


Forbes: Santidade, como é bem sabido, V. Exa. Participou ativamente e de forma direta na produção do documento “Os Fundamentos do Conceito Social da Igreja Ortodoxa Russa”, aprovado no Concílio Episcopal Jubilar de 2000. Este documento formulou e sistematizou a posição da Igreja sobre um amplo espectro de questões que dizem respeito à vida da sociedade e, em particular, enfatizou a importância da caridade e do trabalho social em um mundo onde as desigualdades são cada vez maiores. Desta forma, o senhor se antecipou ao Papa Francisco e sua famosa declaração sobre uma Igreja que é pobre e para os pobres. Ao contrário de vocês dois, a economia postula o egoísmo natural do homem que se esforça unicamente pela maximização da gratificação individual, muitas vezes por meios pecaminosos.

Patriarca Kirill: O esforço para o auto-enriquecimento como a meta mais elevada da vida, como egoísmo social auto-satisfeito, vai contra a cosmovisão cristã. Essa luta é estimulada, creio eu, não pela ciência econômica, para a qual a absolutização de fatores particulares iria contra sua natureza. Em vez disso, esse papel é desempenhado por elites financeiras e econômicas e corporações transnacionais. A razão para encorajar o instinto consumista é óbvia - é a maximização do lucro sem levar em conta as consequências sociais ou individuais. Mas não é degradação moral de uma sociedade sem Deus que gerou o esforço irrestrito para obter riqueza material, para enriquecimento por qualquer meio, incluindo engano, corrupção, atividades criminosas, a distribuição injusta do excesso de lucro - fonte da crise que atingiu dolorosamente milhões de pessoas vulneráveis? Este é o preço que pagamos por concordarmos em elevar o Bezerro de Ouro ao pedestal da vida social e pessoal.

A transformação do capitalismo e do marxismo em uma espécie de quase-religião é igualmente inaceitável. Quem viveu o período comunista sabe muito bem que a noção de justiça social se transformou em uma ideologia agressiva que destruiu tudo ao seu redor. Centenas de pessoas foram executadas por causa de sua fé, a criação de um gueto social para as classes inimigas - esta é a realidade do “paraíso comunista na terra”.

Não menos perigoso é o “evangelho capitalista”, que vê a queda do comunismo como uma prova de que ele é infalível e não tem alternativa. Já podemos ver como os cristãos no Ocidente, ao seguir os ideais do Evangelho de moderação na aquisição de riquezas materiais e ministério sacrificial ao próximo, são cada vez mais raros, e passam cada vez mais inclusos no quadro ideal de um mundo consumista.

É dever da Igreja apelar àqueles em cujas mãos estão as alavancas do poder econômico a estarem cientes de sua responsabilidade perante Deus e sua criação e perante os homens, e testemunhá-lo por meio de uma preocupação genuína pelo bem-estar dos trabalhadores. Como convém à pessoa humana, todas as pessoas têm direito a viver com dignidade. É evidente que a criação de um mundo harmonioso é impossível sem uma compreensão clara por parte das pessoas da necessidade de estruturar todas as atividades - incluindo a atividade econômica - em bases morais sólidas. Para os cristãos, este fundamento sempre foi a Escritura e a Tradição da Igreja, que sempre teve seus próprios modelos únicos de construção de relações econômicas e seus vínculos com a vida da sociedade - por exemplo, a experiência dos mosteiros Ortodoxos. Muitas cidades da Velha Rússia começaram como um mosteiro.

A Igreja atrai as pessoas, sejam elas empresários, banqueiros, operários ou camponeses, não utilizando uma plataforma político-económica, mas recorrendo aos Evangelhos. Só existe uma maneira segura de superar o impasse social e econômico contemporâneo, que é guiar-se pela palavra de Deus, onde se tem escolha e onde se é obrigado a reivindicá-la. No entanto, isso é combatido por forças poderosas que estão preparadas para usar qualquer meio para impedir o domínio das ideias divinas nas mentes de nossos contemporâneos, pois as pessoas que são iluminadas por Deus tornam-se livres e independentes, e não os cumpridores escravos de suas paixões impostas pela "cultura" consumista moderna.

Forbes: Os líderes cristãos não são economistas profissionais, embora os teólogos tenham estudado o problema da produção de riqueza material. O grande teólogo católico São Tomás de Aquino, por exemplo, em termos inequívocos condenou o empréstimo de dinheiro como indo contra a natureza, como algo que existe apenas porque a ganância humana obriga as pessoas a roubar o tempo de Deus. O senhor tem frequentemente analisado a evolução econômica da Rússia; por exemplo, em 8 de fevereiro de 2012, o senhor chamou a restauração da economia da Rússia nos anos 2000 de um “milagre de Deus com a participação ativa da liderança do país.” O senhor diria que o caos econômico e social da Rússia na década de 1990 foi causado pela ganância excessiva dos oligarcas russos (que roubaram o Estado russo) e dos banqueiros ocidentais (que o levaram à falência)?

Patriarca Kirill: A Rússia conseguiu superar as consequências do colapso econômico e social da década de 1990 de muitas maneiras, e acredito que isso teria sido impossível sem a misericórdia de Deus para com o povo russo que viveu tempos de perseguição por sua fé. Com efeito, a destruição do modo de vida surgida no período soviético que, embora longe de ser perfeita, garantia ao cidadão comum pão, trabalho e teto sobre a cabeça, aconteceu paralelamente à edificação da vida eclesial, de um retorno às tradições espirituais. É minha convicção que o renascimento espiritual da nossa nação, que amadureceu nos anos 1990, lançou as bases dos fenômenos positivos na economia e na vida social nos anos 2000. Longe de mim idealizar a situação daquela época. O sucesso material para muitas pessoas tornou-se uma tentação, uma desculpa para que pensem que, ao atingir um certo nível de conforto material, a fé é uma “opção” desnecessária. Essas pessoas, graças a Deus, são uma minoria.

Sim, na Rússia, a década de 1990 foi uma época de paixões desenfreadas, incluindo a de ganância sem limites. O enriquecimento tornou-se o único valor para a obtenção do qual todos os meios eram bons. Essa ideologia do ganho foi uma manifestação da pobreza de uma sociedade em mudança. Seria errado dizer que existe uma lista de oligarcas que, se não tivessem vindo a este mundo, significaria que as coisas teriam sido diferentes. A doença espiritual da ganância pode afetar todas as camadas da sociedade. Do ponto de vista da moralidade, quem rouba um rublo é tão culpado do mesmo pecado quanto quem rouba bilhões, embora, é claro, as consequências sociais sejam incomparáveis.

Ao mesmo tempo, as paixões humanas não conhecem fronteiras de estado. O oligarca que só pensa em encher os bolsos é igualmente vil onde quer que viva, seja na Rússia, Alemanha ou França. A Igreja Russa exerce seu ministério em muitos países do mundo, tanto dentro da extensão da Comunidade de Estados Independentes como além de seus limites. E nosso rebanho ali encontra desafios semelhantes causados pelas mudanças nas economias nacionais.

A cobrança de uma porcentagem pelos bancos não tem, é claro, os mesmos efeitos sociais negativos que o empréstimo de dinheiro medieval tinham na época de Tomás de Aquino. Mas hoje encontramos na Rússia e em outros países, nos quais o território canônico de nossa Igreja estende, as atividades de empresas de microfinanças que simplesmente roubam pessoas de bem. A Igreja apela às autoridades para que acabem com este ultraje e protejam as pessoas da arbitrariedade das chamadas agências de cobrança.

Forbes: A Igreja Ortodoxa tem a reputação de ser uma organização maciça e monolítica que carece da flexibilidade, digamos, como a dos protestantes. Os protestantes, especialmente os evangélicos americanos, são realmente muito mais empreendedores e inventivos. Recentemente, alguns jovens católicos franceses queriam resolver parcialmente esse problema inventando um aplicativo para smartphones que permitiria às pessoas fazer doações por meio de seus telefones durante a missa. Muitos padres durante o bloqueio na França começaram a conduzir missas virtuais, o que os televangelistas protestantes vêm fazendo há muitos anos. O senhor encorajaria tais iniciativas na Igreja Ortodoxa, que, como sabemos, é bastante conservadora em questões litúrgicas? O que é necessário para a criação de um empreendedorismo verdadeiramente Ortodoxo? Podemos conciliar tradição e inovação?

Patriarca Kirill: Durante o período mais difícil da pandemia, quando os prédios da igreja foram fechados, foram realizadas transmissões de serviços para que as pessoas tivessem a chance de orar, mesmo que apenas por meio de seus computadores ou telas de TV. Surgiu um movimento de apoio à igreja por meio do qual os paroquianos, que não podiam ir fisicamente à sua igreja, enviaram suas doações pela internet. Essa prática se popularizou muito.

Mas esta era uma situação bastante incomum causada pelas circunstâncias incomuns em que nos encontramos. Assim que foi possível, as pessoas voltaram para suas igrejas paroquiais. É missão da Igreja no mundo preservar e proclamar a Verdade e celebrar os sacramentos instituídos pelo Salvador.

Para nós, uma "igreja virtual" é uma substituta que não pode abraçar a plenitude da comunhão humana e Divina, da mesma forma que os aditivos de sabor não podem substituir o sabor adequado de um produto alimentar. Com relação a outras áreas da vida e ministério cristão, as inovações são perfeitamente aceitáveis aqui. A Igreja sempre usou com entusiasmo as novas tecnologias no campo da impressão de livros ou arquitetura, e hoje ela usa tecnologias eletrônicas para pregar a palavra de Deus, a comunidade de sacerdotes blogueiros está crescendo enormemente e aplicativos móveis para atividades missionárias estão sendo criados

O empreendedorismo Ortodoxo, no sentido amplo da palavra, é uma questão separada. É uma alegria para mim, ver como a comunidade de empresários Ortodoxos está crescendo; como o número de projetos de caridade e educacionais, financiados pelo chamado do coração, está aumentando. Eu conheço muitos empresários Ortodoxos que levam sua fé de forma muito sério e atenta, e que se esforçam para entender como os princípios morais da Ortodoxia devem ser refletidos em suas atividades comerciais. A comunicação entre os fiéis entre si desempenha um grande papel aqui. E foi criada uma União de Empresários Ortodoxos que adotou um código de ética. Isto ajuda empresários crentes a estabelecer limites morais em seu trabalho.

Forbes: Como líder da Igreja Ortodoxa Russa, o senhor leva um estilo de vida ascético e observa uma disciplina rígida. Na reunião de líderes globais no Fórum Econômico Mundial, o senhor disse que “A Quaresma começa com a autodisciplina, quando nós a limitamos e limitamos nossas necessidades”. E que “tudo o que está acontecendo com o clima e com as pessoas mostra que não estamos nos desenvolvendo da maneira certa”. Que tipo de ascetismo ou disciplina o senhor aconselharia ao empresário ortodoxo russo que está pronto para servir a sociedade?

Patriarca Kirill: O ascetismo cristão é a arte de combinar um elevado domínio interior de si mesmo, inspirado pelo empenho em cumprir os mandamentos de Cristo com as realidades da vida cotidiana contemporânea. Portanto, devemos começar por nos familiarizar em um nível profundo com a Tradição da Igreja, isto é, estudando as maneiras pelas quais a santidade é alcançada. Claro, tudo começa com a disciplina interior quando o desejo de viver de acordo com Deus e de observar os mandamentos substitui a vontade o "eu" que tudo deseja. Este processo nunca deixa de ter momentos dolorosos pois o “idoso” resiste de todas as formas possíveis, procura defender os seus hábitos e costumes. A fé é necessária para abrir a Deus a oportunidade de nos ajudar diretamente, já que por nós mesmos não podemos lutar com as forças sombrias da alma.

O ascetismo visa acima de tudo a luta contra as paixões. A paixão é um problema porque pode nos engolfar e nos tornar seus escravos. A sede insaciável de poder, de certas coisas materiais ou de dinheiro são exemplos destrutivos das paixões de que muitas pessoas sofrem hoje. Por sua vez, a realização do bem não possui menos força que o vício das paixões; é meramente dirigido à obtenção do bem. Os santos padres dizem que as paixões parasitam a pessoa humana em detrimento das virtudes que ela não incorporou.

Conhecemos exemplos daqueles para os quais o ascetismo pessoal se torna um objetivo em si mesmo, uma expressão de orgulho. Devemos lembrar que o ascetismo é apenas um meio que inculca em nós o amor ao próximo. Se o ascetismo está presente, enquanto o amor e o desejo de ajudar o próximo estão ausentes, a autolimitação perde o sentido. Como escreveu São Paulo: “Se entrego todos os meus bens, e se entrego o meu corpo para me gloriar, mas não tenho amor, nada ganho” (1 Cor 13.3).

Hoje, todo empresário e empreendedor precisa entender claramente que, assim que as pessoas deixam de dar sentido à moralidade em suas vidas, sua vontade é assumida por poderes do mau que manipulam as escolhas que fazem, tornando-as meramente uma ilusão de liberdade , e que lhes trazem infelicidade e sofrimento que não têm correspondência com a quantidade de dinheiro que têm em suas contas bancárias.

Cada jornada começa com a primeira etapa. Que este primeiro passo para o empresário se torne um auxílio consciente para a igreja mais próxima, lar infantil, casa de caridade, centro de ajuda para jovens mães e outras pessoas que se encontram em uma situação de vida anormal. A realização do bem é o combustível que sustenta o fogo da fé no coração de quem sabe reduzir racionalmente as suas necessidades habituais e fazer bom uso dos excessos que surgem.

Forbes: Se antes da década de 1970 o capitalismo ocidental fabricava produtos para o consumo familiar, como filmes para as famílias, apartamentos para as famílias, jogos de mesa para as famílias, então nos últimos quarenta anos uma nova cultura de consumo surgiu com modelos de consumo mais individualizados. Há menos apartamentos, existem sites de namoro para mulheres ocasionalmente solteiras, enquanto os smartphones (o símbolo da última década) se tornaram o item pessoal mais essencial. Essa tendência tornou-se cada vez mais agravada na Rússia pós-comunista, especialmente porque essa evolução ocorreu nos últimos vinte anos. Este crescimento é inevitável? Como podemos reconciliar o capitalismo e a família?

Patriarca Kirill: Houve uma época em que o capitalismo tomava a família como ponto de partida, como consumidora coletiva de bens e serviços. Mas, em algum ponto, as pessoas que careciam de uma base moral sólida foram convencidas a acreditar que produtos e serviços personalizados, feitos sob medida para o consumo pessoal, satisfaziam melhor suas necessidades egoístas.

Carros familiares, apartamentos familiares e filmes para a família sempre envolvem concessões. Sempre temos que abrir espaço para os outros ao nosso redor, temos que fazer sacrifícios e concessões. Mas de que adianta transigir, se o sentido moral, o desejo de servir ao próximo e educar nossos filhos, foi suprimido ou não foi transmitido a nós?

As empresas se aproveitaram disso. O mercado incentiva o caminho de menor resistência ao oferecer às pessoas gratificação instantânea a um preço acessível. O hábito de ter tudo também mina instantaneamente a capacidade de mostrar paciência e esperar um pouco, de fazer esforço e de fazer sacrifícios.

Mas para o capitalismo há um "pequeno" problema: os egoístas não estão aumentando em número. Eles não precisam fazer isso. O número de consumidores está diminuindo constantemente; na verdade, mesmo que desfrutemos do mais alto padrão de vida, ainda somos mortais. Assim, o capitalismo, que não pode “produzir pessoas” encorajando os valores familiares, tem que criar novos consumidores de fora. Das regiões onde se obtêm outros modelos de comportamento, nem que seja para obter lucro com eles. Esta é uma espiral descendente que inevitavelmente terminará em colapso.

Até recentemente a Rússia seguia esse caminho, mas agora na sociedade e nas autoridades há uma compreensão de que a família é um valor básico, e não um bem ou serviço. Recursos devem ser despejados nele - recursos materiais e morais - e eles devem ser protegidos e apoiados. Mais e mais pessoas estão chegando a essa conclusão também no Ocidente, ao perceber que sem a família tradicional não pode haver futuro para a humanidade.

Patriarchia.ru

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