A Fé Antiga e Perene Falando ao Mundo Atual: Temas Teológicos, Notícias, Reportagens, Comentários e Entrevistas à luz da Fé Ortodoxa.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O Primado de São Pedro na Igreja Ortodoxa



Por Padre Mateus (Antonio Eça)
Vigário do Brasil da Metrópole Ortodoxa do Equador e Amérlica Latina
Santo Sínodo Grego do Calendário Patrístico - GOX

A mídia Ocidental, vez por outra veicula imagens e notícias que mostram uma crescente cordialidade entre o Patriarca de Constantinopla e o Papa de Roma. Estes encontros amistosos e a existência de um canal aberto de diálogo, passam para a população a ideia de que a unidade entre as duas Igrejas está bem próxima; no entanto, a história não é bem assim. Todo esse diálogo e o desejo de reatar a comunhão esbarra bruscamente num ponto: No que vem a ser o Primado Petrino e qual é o papel do Bispo de Roma?

Esta nos parece ser uma discursão sem fim - não porque não haja conhecimento de ambas as partes dos dados da Santa Tradição (e isto inclui as Santas Escrituras) - mas porque outros fatores mediam a interpretação e aplicação desses dados.

Da nossa parte, podemos dizer – sem espírito de soberba e desprezo do outro – que a posição Ortodoxa é inequívoca e sem subterfúgios retóricos e hermenêuticos na abordagem dos dados históricos. E é bom lembrar que a posição que sempre foi - e até hoje é sustentada no Oriente - também foi por vários séculos partilhada pelo Ocidente. Roma somente passou a reivindicar uma jurisdição de caráter universal no séc. IX após a aliança política com o Império Franco (que rivalizava com o Império Romano do Oriente - dito Bizantino pelo Ocidente). Quando a dinastia carolíngia entrou em declínio, os bispos ocidentais buscaram exercer uma primazia sobre o poder temporal com base em uma coleção de documentos jurídicos que mais tarde, em virtude de possuir documentos falsificados - ficaria conhecida como “Decretais do Pseudo-Isidoro”. Esta coleção muniu o Papa Nicolau I (858-867) de base jurídica para reivindicar a primazia papal sobre o poder temporal e uma jurisdição universal.

Tal aspiração papal foi levada pelo Papa Adriano II (867-872) ao III Sínodo de Constantinopla (considerado por Roma como VIII Concílio Ecumênico) e rejeitada pelo mesmo, o qual reafirmou a Pentarquia e o papel do Bispo de Roma como “Primeiro entre Iguais” (Primus inter Pares). Este dado histórico é confirmado na obra “História da Igreja Católica, Edições Loyola (2006), pgs 123, 176”. Tal publicação consiste num ensaio histórico assinado por 10 historiadores (todos com doutorado em teologia, dos quais 9 são Sacerdotes Romanos e vários deles doutores em história eclesiástica com especialização em patrologia). Portanto, isto não é nenhuma digressão Oriental.

A Igreja Ortodoxa entende que Cristo conferiu a Pedro o primado entre os Apóstolos, mas em bases muito distintas do ensino romano:

Primeiramente, primado não é chefia, mas uma posição de honra (como a de um irmão mais velho). As Escrituras narram no Livro dos Atos dos Apóstolos a realização do primeiro concílio realizado na Igreja, ocorrido na cidade de Jerusalém, do qual participaram todos os Apóstolos, vários Presbíteros e irmãos da Igreja local. O interessante é que a narrativa demonstra que, embora Pedro se fizesse presente e usasse da palavra, a presidência do Concílio foi exercida por São Tiago, e é o parecer deste que é acatado, expressando sua fala a unidade do Concílio e a direção do Espírito Santo (Atos 15:1-29). Curioso também, é que na sua fala, São Pedro se refere à sua primazia, não como chefe dos Apóstolos, mas como aquele que teve a honra de ser eleito por Deus para ser o primeiro a anunciar o Evangelho aos gentios (Pedro é quem abre as portas da Igreja para os gentios entrarem, assim como ele no Pentecostes abriu as portas da Igreja para os judeus e prosélitos dispersos entre as nações). Deus lhe conferiu esta primazia, no entanto, tempos mais tarde, o Colégio Apostólico entenderá que a primazia entre os gentios, agora era por Deus conferida ao Apóstolo Paulo, ficando Pedro com os judeus (Gal. 2:7).

Em segundo lugar, na hipótese de ser Pedro o chefe dos Apóstolos, por que razão esta chefia seria herdada pelo bispo de Roma, se Pedro exerceu primeiramente seu pontificado na Palestina e não em Roma?

Ioannis Zizioulas
O Metropolita de Pérgamo, Ioannis Zizioulas diz pertinentemente que “os católicos devem levar a sério a noção de plena catolicidade da Igreja local promovida pelo Concílio Vaticano II, e devem aplicá-la a sua eclesiologia.” Isto é, se cada Igreja Local é verdadeiramente católica - pois ao celebrar a Eucaristia a Igreja Local entra em comunhão com todas as demais Igreja na terra e também com a Celeste - então, os Bispos que as presidem exercem localmente o primado, ou seja, a função de Pedro entre os Apóstolos.

Alban Mosher resume de forma muito feliz como o Primado Petrino é exercido na Igreja Ortodoxa:

“Todo bispo Ortodoxo que partilha corretamente a palavra de Verdade é um sucessor de São Pedro e todos os Santos Apóstolos... Todo bispo Ortodoxo em sua diocese é responsável pela preservação da unidade da igreja local e é a fonte daquela unidade. 
 Dioceses locais então se reúnem e formam um sínodo regional, com o bispo da cidade mais importante sendo o Metropolita daquele sínodo local. O Metropolita também exerce a Cátedra de São Pedro no sínodo local e é responsável pela unidade do sínodo local. 
 Vários sínodos locais então se reúnem e formam um sínodo regional, no qual o primeiro hierarca daquele sínodo regional possui o título de Arcebispo. Ele também é responsável pela unidade do sínodo regional e exerce a Cátedra de São Pedro entre eles. 
 Alguns desses Arcebispos também possuem o título de Patriarca de acordo com a história e lugar de honra pela importância da cidade que ele representa. Esta cidade geralmente é uma capital nacional, ou uma cidade associada com os Apóstolos. Desse modo, Sua Beatitude o Patriarca Ignatius IV é também um sucessor de São Pedro, que foi o primeiro bispo de Antioquia.” [1]

É também muito interessante vermos, de forma resumida, alguns dados históricos:

São Pedro e São Paulo
1.         A igreja indivisa conferiu a Roma uma primazia (e não uma jurisdição universal), de natureza disciplinar e não dogmática; e a Igreja ao se organizar juridicamente, a fim de uma melhor sintonia administrativa com o Imperador, retira do modelo de organização do Império Romano o seu modelo eclesiástico, ou seja, a Tetrarquia (Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém). A Igreja se organiza administrativamente a partir de uma perspectiva teológica que ficou conhecida como "Sinfonia Bizantina" que reza sobre a independência e harmonia entre o poder Patriarcal e o Imperial.

2.         Roma foi escolhida para ser primeira por critério disciplinar e administrativo, e não por critério teológico; por ser a capital do Império, ela também deveria exercer a Primazia Patriarcal. Assim, quando o Imperador institui Constantinopla como Capital do Império no Oriente, os Concílios estabelecem sua paridade eclesiástica com Roma. Isto gerou uma gritaria em Roma porque esta estava sob domínio bárbaro e via dia a dia seu prestígio se esvanecer, e sua glória se transferindo para a nova capital Imperial, Constantinopla.

3.         A primazia na Igreja nunca foi confundida com jurisdição universal. Como bem demonstra Alba Mosher, esta é uma prerrogativa inerente a todos os Metropolitas ou Arcebispos Primazes. Modelo de Primazia partilhada nós já encontramos nas Santas Escrituras quando os Apóstolos reconhecem a primazia de Pedro sobre os cristãos judeus e a de Paulo sobre os cristãos gentílicos (Gálatas 2:7).

4.         Se o critério para estabelecer uma Sé Primaz se firmasse com base histórica na Cátedra Petrina, esta honra deveria caber a Antioquia (onde os discípulos pela primeira vez foram chamados de cristãos – Atos 11:26) e não a Roma, pois Antioquia foi a primeira Sé de Pedro (atestada pelas próprias Escrituras), foi nela e por ela que se deu a vocação, ordenação e envio do Apóstolo Paulo aos gentios. Portanto, Antioquia é a mãe da Igreja dos gentios (incluindo Roma). Pedro (o Primaz da circuncisão e Paulo o Primaz da Incircuncisão), tiveram suas primeiras Cátedras em Antioquia. Quando Roma ainda era um centro pagão, Antioquia já refulgia magnânima o seu resplendor para o mundo.

5.         A ideia de infabilidade papal não era desconhecida somente dos Ortodoxos, mas também dos próprios Cristãos Ocidentais, e isto não apenas nos primeiros séculos, mas até o século XIX, precisamente até o ano de 1870, ano em que transcorreu o Concílio Vaticano I, cuja Constituição de Fé promulgou o dogma da infabilidade papal. No entanto, esta decisão conciliar (para qual não faltaram manobras e artifícios políticos), se deu em meio a grande tumulto entre os bispos romanos, gerando até mesmo um cisma. Este cisma fez surgir a Igreja Vétero-Católica, a qual em sua gênesis se constituiu de um grande número de clérigos (bispos e padres) que se opunham a esta inovação sem fundamento eclesiológico convincente e contrária à Tradição. Eis os três primeiros tópicos da Declaração de Fé, firmada pelos Bispos e Padres dissidentes, declaração esta que ficou conhecida como a “União de Utrecht” (1889):
I.          Aderimos a Regra de Fé formulada por São Vicente de Lérins nestes termos: "Teneamus Id, quod quod, semper ubique, quod ab omnibus est Creditum; hoc est etenim Catholicum proprieque vere"(Afirmemos aquilo em que se tem acreditado em todas as partes, sempre e por todos, porque isso é verdadeiro e propriamente Católico). Assim sendo, conservamos e professamos nossa fé nas doutrinas da Igreja Primitiva expostas nos Símbolos Ecumênicos e especificadas nas decisões dos Concílios realizados pela Igreja indivisa do primeiro milênio. 
II.         Por isso, rejeitamos os decretos do Concílio Vaticano, que foram promulgados em 18 de Julho de 1870 relativos à infalibilidade e ao Episcopado Universal do Bispo de Roma, decretos que estão em contradição com a fé da Igreja Antiga, e que destroem sua constituição canônica, atribuindo ao Papa a plenitude dos poderes eclesiásticos sobre todas as Dioceses e sobre todos os fiéis. Pela negação de sua competência primacial, não queremos negar a primazia histórica que vários Concílios Ecumênicos e os Padres da Igreja antiga atribuíram ao Bispo de Roma, reconhecendo-o como o Primus inter pares. 
III.        Rejeitamos o dogma da Imaculada Conceição promulgado pelo Papa Pio IX em 1854, a despeito das Sagradas Escrituras e em contradição com a Tradição dos primeiros séculos.

Acho muito difícil que tal unidade possa acontecer. Por que? Porque do lado Ortodoxo, abrir mão da Santa Tradição é algo que seria negar a nossa própria identidade e alma, isto sem falar da firme convicção de que a Igreja é Fiel Guardiã do Depósito da Fé, não tendo autoridade nenhuma para nele mexer (alterando, somando ou subtraindo), pois, se assim o fizer, cai em apostasia e fica sob Juízo Divino. Do lado Romano,  renunciar ao seu dogma particular, é fazer desmoronar toda uma estrutura sedimentada por cerca de um milênio, o que lançaria descrédito em toda sua história e faria do seu apogeu Ocidental um castelo de areia. Renunciar à riqueza e à glória não é coisa fácil. O Jovem Rico que o diga. No entanto, para Deus, nada é impossível.





[1] Alban Mosher, Leitor da Paróquia Ortodoxa Grega de Santa Catarina do Sinai (EUA).

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O Oriente Cristão e a Justificação pela Fé


Por Pe. Mateus (Antonio Eça)


“Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito... 
 ...Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou”.
Romanos 8:2-5, 29-30


A Igreja de Roma e a Federação Luterana no fim da década de 90 fizeram uma declaração conjunta reafirmando a doutrina da justificação pela fé. Nesta mesma declaração Roma reconhece a pertinência do ensino de Lutero nesta questão. A compreensão desta doutrina no seio da Igreja de Roma está muito bem analisada no sitio de "Veritatis Esplendor" (ver link acima postado por Humberto Oliveira).

No Oriente Cristão a Justificação pela Fé nunca foi um grande problema, a não ser no primeiro século quando os conflitos com os judeus eram constantes. Contudo, a justificação, no Oriente Cristão, não se confunde com salvação, como acontece com o Ocidente. No Oriente, conforme o ensino Apostólico (Rm. 8:29,30; Heb. 9:7; 2 Ped. 1:3-11) e dos Pais, a justificação é apenas uma etapa na economia da salvação, do processo soteriológico (e nesta perspectiva é que se insere a fala de São João Crisóstomo).

Salvação no Oriente sempre foi concebida como o alcance da semelhança Divina (por meio da graça da Santíssima Trindade), a unidade ontológica com o Divino, tecnicamente chamada de “Theosis”.

Assim, o pecado - muito mais do que uma ofensa a Deus (que não pode Ser dotado de paixões), consiste basicamente numa enfermidade que se instalou na alma da humanidade, quando nossos primeiros pais desviaram o seu desejo pela Árvore da Vida (Ícone do Criador), buscando “ser como Deus” pela via do “fruto do conhecimento do bem e do mau” (erra o alvo). Este fruto sempre foi compreendido pelos Pais Apostólicos como sendo um ícone dos desejos e apetites do corpo e do ego. Ou seja, o homem abandona o Criador e volta-se para si mesmo. Um ato forense (seja uma fidelidade a Lei ou o estribar-se numa declaração de perdão) não são capazes de gerar vida, no máximo o que conseguem é produzir uma moralidade e a reformulação ética. Somente o Sopro Daquele que Vive (participação no Espírito por meio dos Seus Santos Mistérios e da luta do crente contra as paixões - ascese) pode gerar a vida: não uma vida fictícia, baseada em uma presunção, mas de fato e de verdade, que gera no crente a mente de Cristo e um movimento firme e resoluto da alma em direção à unidade ontológica com a Deidade Trina.

A teologia estritamente jurídica de Tertuliano e de Agostinho (pais do Ocidente) conferiram um legado - tanto aos romanos como aos protestantes – de uma espiritualidade com base na moral e na ética, referências pelas quais, no Ocidente, se avaliam o estado da alma. Mais tarde, a Escolástica romana e a racionalidade do “Renascimento Ocidental”, vão agregar à moral e à ética uma dimensão racionalista, onde a via sacramental e a ascese cristã são mediadas por uma burocracia (no caso do Catolicismo Romano) e no mundo Protestante reduzidas à categoria do mito, do sem-sentido ou memorativa. Em se tratando de Calvinistas, Anglicanos e Luteranos históricos, haverá um reconhecimento ambíguo da presença da Graça nos Sacramentos. O monergismo de Agostinho elimina por completo a ascese, reduzindo a participação na Vida Divina a uma graça forense, que só se tornará realidade ontológica nos céus.

Portanto, para o Oriente Cristão, a Justificação é um degrau basilar para se alcançar a Salvação. Contudo, não se pode confundir o degrau com a escada que nos leva à União com Deus (imagem e semelhança).


São Pedro e São Paulo

“Graça e paz vos sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus, e de Jesus nosso Senhor; visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou pela sua glória e virtude;
pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.

E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência a temperança, e à temperança a paciência, e à paciência a piedade, e à piedade o amor fraternal, e ao amor fraternal a caridade. Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas, não vos deixarão ociosos nem estéreis no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo.

Pois aquele em quem não há estas coisas é cego, nada vendo ao longe, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados. Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis. Porque assim vos será amplamente concedida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” [1].

2 Pedro 1:2-11


[1] O grifo é meu.