São Gregório, o Grande, Patriarca e Papa de Roma (Séc. VI) |
Se
da mão de Deus recebemos os bens, por que não suportaremos os males?
Paulo,
considerando em seu íntimo as riquezas da sabedoria e vendo-se externamente um
corpo corruptível, exclama: “Temos este
tesouro em vasos de barro”!
No
santo Jó, o vaso de barro sofre no exterior as rupturas das úlceras. Por
dentro, porém, continua íntegro o tesouro. Por fora é ferido de chagas. Por
dentro, a perene nascente do tesouro da sabedoria derrama-se em palavras
santas: “Se da mão de Deus recebemos os
bens, por que não suportaremos os males?” Para ele, os bens são os dons de
Deus, tanto os temporais quanto os eternos, enquanto que os males são os
flagelos do momento. Diz o Senhor pelo Profeta:
“Eu, o Senhor, e não há
outro, faço a luz e crio as trevas, produzo a paz e crio os males”.
“Faço a luz e crio as
trevas”:
quando, pelos flagelos, são criadas exteriormente as trevas do sofrimento, no
íntimo, pela correção, acende-se a luz do espírito.
“Produzo a paz e crio os
males”: Voltamos
à paz com Deus quando os bens criados, porém, mal desejados, por serem males
para nós, se transformam em flagelos. Pela culpa, estamos em discórdia com Deus.
Portanto, é justo que, pelos flagelos, retornemos à paz com ele. Quando os bens
criados começam a causar-nos sofrimento, o espírito assim castigado procura
humildemente a paz com o Criador.
É
preciso considerar com muita atenção, nas palavras de Jó, contra a opinião de
sua mulher, a justeza do seu raciocínio:
“Se recebemos da mão do
Senhor os bens, por que não suportaremos os males?”
Grande
conforto na tribulação é, em meio às contrariedades, lembrarmo-nos dos dons
concedidos por nosso Criador. E não nos abatemos, em face da dor, se logo nos
ocorrer à mente o dom que a reanima. Sobre isto está escrito:
“Nos dias bons, não te
esqueças dos maus, e nos dias maus lembra-te dos bons”.
Quem
recebe os bens da vida, mas durante os bons tempos deixa inteiramente de temer
os flagelos, cai na soberba através da alegria. Quem é atormentado pelos
flagelos e nestes dias maus não se consola com os dons recebidos, perde, com o
mais profundo desespero, o equilíbrio do espírito.
Assim
sendo, é necessário unir os dois, de modo que um sempre se apoie no outro: que
a lembrança dos bens modere o sofrimento dos flagelos e que a suspeita e o medo
dos flagelos estejam a mordiscar a alegria dos bens. O santo homem com suas
chagas, para aliviar o espírito oprimido em meio às dores dos flagelos, pensa
na doçura dos dons: “Se recebemos da mão do Senhor os bens, por que não
haveremos de suportar os males?”
Dos Livros
"Moralia sobre Jó,
de São
Gregório Magno, Patriarca e Papa de Roma (Séc. VI)