Em Gana, em 2002, durante a Copa da Coreia e do Japão: o segundo time de
todos eles era o Brasil
Do Editor
Com cerca de 200.000.000 de técnicos, achar uma
opinião que seja igual a nossa para a tragédia do nosso futebol não é coisa
difícil. Mas, entre tantas análises semelhantes, encontramos uma publicação
menos passional e criteriosa. Por isto, reproduzimos em nosso Observatório o
texto de Luíz Carlos Azenha, publicado em Viomundo porque achamos uma análise pertinente
e que contribui para salvarmos da vergonha uma das maiores glórias do Brasil: o
seu futebol.
Uma outra análise interessante, à qual recomendamos a
leituras, é a feita por Flávio Gomes, intitulada Flávio Gomes: 'O fã de Pinochet e o que distribui cones em
campo conforme', também uma publicação em Viomundo.
Mas, para o nosso Observatório, achamos o conteúdo de Luiz Azenha, mais
pertinente. Segue o texto:
"Muito se falou, especialmente depois da goleada
histórica da Alemanha sobre o Brasil, da reforma pela qual passou o futebol
alemão desde 2000, quando o país passou por um fiasco na Eurocopa. Resumo de uma
reportagem da Deutsche Welle:
Temendo um vexame nacional na Copa do Mundo realizada
em casa seis anos depois, os alemães botaram a mão na massa e resolveram tratar
do problema pela raiz, criando um programa nacional, inédito no mundo, de
formação de jovens craques, que obrigou os 36 clubes profissionais alemães a
fundarem escolinhas de futebol. Para montar os centros de formação, a
Federação Alemã de Futebol (DFB, na sigla alemã) enviou especialistas para
visitar escolas de futebol francesas, holandesas e espanholas. Hoje, o país
exibe uma rede de cerca de 390 centros de treinamento, ligados aos clubes,
supervisionados pela DFB e distribuídos em diversas cidades alemãs. Desde 2002,
mais de meio milhão de euros foram investidos na formação de futuros jogadores.
Um detalhe importante é que seleção dos talentos é feita explicitamente sem
priorizar “qualidades alemãs”, como força e disciplina, mas observando
sobretudo a habilidade das crianças e adolescentes no tratamento da bola.
Mas, os alemães estariam apenas interessados em
resgatar o orgulho nacional? Com certeza, mas não apenas isso. Apontamos abaixo
cinco outras razões:
1. A INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO
O entretenimento é uma indústria de ponta, do futuro.
Quando cresce a renda, as pessoas tendem a gastar mais com a qualidade — ou o
que presumem ser a qualidade — de suas horas livres. O futebol se encaixa nisso
tanto quanto o cinema.
Os bilhões de dólares recolhidos por Hollywood para a
economia americana crescentemente vem de fora dos Estados Unidos, como mostra o
gráfico abaixo da revista britânica Economist:
A linha azul escura mostra o crescimento das vendas de
Hollywood fora dos Estados Unidos, em relação ao mercado doméstico. Não estamos
falando em trocados, mas na casa dos R$ 80 bilhões de reais anualmente. O
entretenimento é uma grande indústria, com a vantagem também de exportar os
valores culturais de um país.
No estádio do Kashima Antlers, em Kashima, no Japão,
em 2001, com Zico de diretor e Toninho Cerezzo de treinador: eles evoluíram e
nós ficamos parados?
2. BOLAS, CAMISETAS E EMPREGOS
A Alemanha tem a maior indústria global de
material esportivo, com Adidas e Puma empregando cerca de 60 mil pessoas e
faturando perto de R$ 50 bilhões anualmente. É uma indústria com altíssima taxa
de retorno, já que numa camiseta de futebol ela vende muito mais que tecido,
mas identidade com atletas, clubes e nações. A Alemanha tem quatro entre os 20
clubes mais valiosos do mundo, segundo a
revista Forbes. Na ponta da lista estão Real Madrid, Barcelona,
Manchester United e Bayern de Munich. Estes clubes tem um grande potencial de
faturamento no Exterior, como fonte de atração de compradores de suas
camisetas, para não falar da valorização da marca para os patrocinadores
globais.
3. DIREITOS DE TV
Os direitos de transmissão de TV são o coração do
futebol. São a principal fonte de renda dos clubes, além de bombar o patrocínio
da e a venda de camisetas e aumentar o faturamento com o público nos estádios.
É esse dinheiro que permite aos clubes manter escolinhas de futebol, bons
elencos e competir com adversários. Mas não basta a um clube ter uma boa
escolinha de futebol se ele não pode manter os jogadores que desenvolve e é
dominado pela praga dos empresários do futebol.
Um clube sem acesso à TV é um clube praticamente
morto. A venda de direitos domésticos de TV rende aos clubes alemães cerca de
R$ 2 bilhões anuais. Na Alemanha tanto as emissoras públicas ARD e ZDF quanto a
Sky detém direitos, ou seja, não existe monopólio. Quem define prioridades são
a federação e os clubes, exatamente o inverso do Brasil, onde quem tem a faca e
o queijo é o conluio Globo-CBF. Quando o clube dos 13 tentou desafiar isso,
como descrevemos detalhadamente em O Lado Sujo do Futebol, foi
esmagado!
Os jogos da Bundesliga, a liga alemã, são transmitidos
para 204 países no mundo. Com isso aumenta o faturamento dos clubes alemães com
a venda de patrocínios, camisetas e propagandas em placas nos estádios.
Existe uma tremenda competição entre as principais
ligas europeias pela venda de direitos de TV. As cincos maiores delas —
Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha — recolhem o
equivalente a R$ 15 bilhões anuais, segundo a Bloomberg.
A lista acima é a dos clubes que mais faturam com a
venda de direitos de TV, em euros. Real Madrid e Barcelona lideram porque, dos
cinco países acima citados, só na Espanha os direitos não são vendidos
coletivamente. Juntos, eles faturam metade dos direitos de todo o futebol
espanhol, às custas de um maior desequilíbrio do campeonato. O mesmo acontece
hoje no Brasil, com domínio completo de Corinthians e Flamengo.
Porém, como disse Sean Hamil, professor do centro de
negócios do esporte de uma universidade de Londres, à Bloomberg, uma forma mais
equitativa de distribuição garante que qualquer clube possa ganhar de outro no
campeonato. A fórmula de sucesso de qualquer competição é o equilíbrio, que
traz emoção a cada rodada e evita as disparadas de líderes inalcançáveis. É por
isso que todas as ligas dos Estados Unidos, de basquete, futebol americano e
beisebol (NBA, NFL e MLB) trabalham pelo equilíbrio entre os clubes e o
desenvolvimento de mercados locais onde o clube do coração tenha relação
direta, cotidiana, com os moradores da cidade ou região.
Um campeonato equilibrado fortalece o conjunto dos
clubes.
Hoje, a final da Champions League já é vista por cerca
de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. Na África, vi pessoalmente em
Freetown, Serra Leoa, em Beira, Moçambique e até na maior favela do mundo, em
Kibera, Nairobi, no Quênia: pequenos empresários montando cinemas improvisados
para ver os jogos de campeonatos europeus.
O futebol tem imenso potencial nos negócios do
entretenimento do futuro, especialmente quando Índia e China forem incorporados
plenamente a ele, e os alemães estão de olho em uma fatia cada vez maior deste
bolo.
E há, além de tudo, grande potencial de segmentação.
Aguardem: é questão de tempo até que os grandes jogos sejam transmitidos em
cinemas de altíssima definição ou pela internet, como se faz hoje com as óperas
do Metropolitan de Nova York e da Filarmônica de Berlim.
4. TURISMO ESPORTIVO
Infelizmente esta pauta escapou à mídia brasileira
durante a Copa, talvez por desconhecimento. Existe uma legião dos assim
chamados mochileiros do futebol. Não, não são os argentinos acampados no
sambódromo de São Paulo. São fãs do bom futebol, não necessariamente desta ou
daquela seleção. Vi pessoalmente sete jogos da Copa no Brasil. Poloneses,
tunisianos, chineses, malaios, indianos… Na Índia, em 2002, fui à casa do
craque Barreto, desconhecido no Brasil mas goleador do campeonato local. Era
praticamente um centro de peregrinação de Kolkata, a antiga Calcutá. Fui a uma
partida do time dele, o Mohun Bagan, em Goa, um espetáculo inesquecível (para
delírio da torcida local, o time de Barreto tomou uma virada inacreditável,
vencia por 2 a 0 e perdeu de 4 a 3).
E a Índia nunca disputou uma Copa do Mundo… ainda.
Eu não sei se ainda é, mas o Brasil até recentemente
era campeão absoluto de torcedores na África, Ásia e Oriente Médio.
O chamado “turismo futebolístico” tem imenso potencial
de crescimento e independe da Copa do Mundo. O viajante vem ao Rio de Janeiro e
inclui ver uma partida no Maracanã no roteiro, assim como o brasileiro que vai
a Nova York quer ver pelo menos um show da Broadway. Os alemães também estão
correndo atrás disso.
Ronaldo (à direita, atrás do repórter) num blindado,
chega ao estádio de Porto Príncipe para um jogo diplomático: foi 6 a 0 para o
Brasil, em 2004
5. DIPLOMACIA INTERNACIONAL
É óbvio e não é de hoje o esforço da Alemanha para
projetar uma nova imagem no mundo.
Neues Museum, em Berlim. Minha filha Ana Luisa me leva
para ver uma exposição sobre a relação de altos e baixos entre Alemanha e
Rússia. Os “baixos” significam uma guerra atroz em que morreram 20 milhões de
soviéticos; em que, na sua contra-ofensiva, soldados soviéticos cometeram
milhares de estupros. Ou seja, não é nada comparável à rivalidade entre Brasil
e Argentina. Mas, de fato, a relação entre alemães e russos é muito mais ampla
que uma guerra devastadora.
Dou uma olhada no catálogo da exposição. A mostra é
promovida por entidades ligadas diretamente ao governo alemão, parte de um
esforço diplomático de reaproximação com os russos.
Hoje a Alemanha se propõe a ser a ponte entre o
ocidente europeu e a Eurásia, através de Moscou. Existem sólidos negócios entre
os dois países.
Mas, no campo das relações humanas, as memórias
associadas a Hitler são impeditivas desta relação.
No livro German Genius, o jornalista Peter
Watson descreve em algum detalhe o esforço dos alemães para mudar sua imagem no
Reino Unido com o objetivo de atrair turistas, estudantes, investimentos e
gente interessada em aprender alemão. Registre-se que, em todo o planeta, os
alemães das novas gerações são campeões no conhecimento do inglês: 97% tem
conhecimento básico e 25% são fluentes.
O futebol dispensa o idioma. É linguagem praticamente
universal. É um poderosíssima arma diplomática. Atravessando de automóvel a
Jordânia, a caminho do Iraque, minha equipe de televisão correu risco até se
identificar: “Ah, brasileiros, o Ronaldinho!”.
O diretor de marketing da seleção alemã, que acompanha
a delegação ao Brasil, em entrevista à ESPN Brasil, admitiu o que sempre me
pareceu óbvio: as atividades de jogadores alemães no Brasil foram programadas
para apresentá-los aos brasileiros como pessoas comuns, interessadas em nossa
cultura. Ele falou isso com todas as letras.
Eu acrescentaria: talvez para desfazer a imagem de
alemães frios, calculistas, cruéis e autômatos, que foi espalhada pelo mundo
nos filmes de Hollywood durante e depois da Segunda Guerra Mundial.
*****
Nas minhas viagens mais recentes à África, notei um
fenômeno curioso: agora, as camisetas amarelas da seleção brasileira dividem
espaço com as do Barcelona e do Manchester United. Estamos perdendo espaço. O
campeonato brasileiro, por outro lado, tem mínima expressão internacional: é
dominado por jogos sofríveis.
Como demonstrado acima, o futebol não é apenas um
patrimônio cultural do Brasil. Ainda que mal explorado, é também um importante
patrimônio econômico e diplomático, como ficou explícito quando o Brasil levou
a seleção para jogar no Haiti. Eu estava lá e vi em Porto Príncipe uma das
cenas mais impressionantes de minha carreira jornalística: Ronaldo pendurado em
um blindado, acompanhado nas ruas por imensa multidão de torcedores do Brasil.
No Mineirão, cercado de turistas estrangeiros cujas
seleções nem se classificaram para a Copa, vi gente incrédula que veio ver o
Brasil jogar se perguntando: o que está acontecendo? Há alguma briga entre os
jogadores? Algum motivo obscuro para tamanho vexame?
Talvez a Alemanha perca a final da Copa para a
Argentina por 7 a 0. Ou o Brasil goleie a Holanda por 8 a 0. Talvez os 7 a 1
tenham sido apenas um desastre fortuito, coisa do Sobrenatural de Almeida.
Mas minha impressão de leigo é de que, enquanto a
Alemanha trabalhou para reconstruir seu futebol, o Brasil está a caminho de
destruir um patrimônio importante de nossa jovem civilização. Tudo indica que
teremos mais do mesmo. Muda-se o treinador, mas permanecerá uma estrutura que
favorece cartolas pilantras, uma entidade “sem fins lucrativos” milionária —
que comanda clubes majoritariamente falidos — e um grupo midiático que age como
dono do futebol brasileiro.
PS do Viomundo: Obviamente que a tendência de uma mídia quase
tão fraca quanto nosso futebol é de focar no acessório e esquecer do essencial,
por motivos políticos, econômicos ou por pura incompetência."